
Vivi minha primeira infância nos anos 1980, período marcado pelo avanço tecnológico, mas ao mesmo tempo por ser muito analógico. Agora imagine, raro leitor da geração Z, um mundo sem internet e sem streaming, onde o seu entretenimento favorito tinha hora certa para começar e as casas geralmente só tinham um aparelho para reproduzi-lo. Isso mesmo, evoquei a década mais legal de todos os tempos para citar uma prática daquela época: assistir novelas.
Ver novelas sempre foi uma prática familiar na minha casa e, mesmo sem entender as nuances, gostava dos personagens engraçados e das partes cômicas. Meu pai, um baby boomer criado com mais dez irmãos, órfão de pai aos nove e com as responsabilidades de um “homenzinho” aos treze, sempre me alertava para os perigos vindos das telenovelas. Quando chegava do trabalho e me via diante da TV, não hesitava em proclamar: “tá vendo novela, moleque? Isso é coisa de mulherzinha, hein”! Quando eu argumentava que todo mundo fazia isso, ele retrucava com a famosa frase: “você não é todo mundo”…
Em seguida, logo após o jantar, acomodava-se diante daquela caixinha quadrada e fazia o mesmo, rindo em falsete com as partes engraçadas. Às vezes eu ria mais da risada dele que das cenas. Ainda era menino, não entendia o porquê de meu pai falar uma coisa e fazer outra.
Minha mãe e minha avó não me condenavam por assistir novelas. Com a minha avó, aprendi a respeitar a “liturgia novelística” e praticar o extremo silêncio quando o Francisco Cuoco ou o Tarcísio Meira estavam falando, depois entendi que eram os crushs dela. Minha mãe era mais democrática, permitia observações sobre seus galãs (ela adorava o Edson Celulari e um que eu achava feio antes mesmo dele ficar careca, o Jayme Periard), falava sobre os romances, trazia lições de relacionamentos, não perdia a oportunidade de condenar atitudes irresponsáveis e de sempre nos colocar nas histórias. Nunca esqueço uma cena em que seu crush (o Jayme) estava num fliperama, em sua cadeira de rodas, “bebaço” e arrumando treta com outros jogadores. Minha mãe olhou para seus três rebentos que adoravam jogos eletrônicos e decretou: “Estão vendo? É isso que vão encontrar nesses lugares.”
Obviamente, quando falávamos que todo mundo ia no fliperama, adivinha o que ouvíamos?
Essa “constituição do eu” é tema sério e, para não sucumbir à ideia de alecrim dourado que todos os pais tentam incutir nas suas crias, nosso parâmetro sempre será o que os outros fazem. Nosso olhar para nós mesmos depende dos inúmeros conflitos com as outras pessoas e com os quais temos que lidar. O famoso filósofo existencialista Jean-Paul Sartre dizia que isso é um mal necessário: “O outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo”.
Sabe quando nos deparamos com uma atitude tão inusitada e sem noção de alguém e sentimos um certo alívio? Aquele senso de que ainda não chegamos àquele ponto? Ou quando percebemos uma pessoa criticando, julgando e condenando outra por fazer exatamente o que ela faz? (Essa sempre me soa bem familiar).
Na verdade, todos nós fazemos isso, pois é um modo de regulação de quem somos, de nos situarmos. A tomada de consciência é uma dádiva, mas infelizmente não acontece da mesma forma para todos. Cada um tem o seu processo! E às vezes é longo como uma novela de duzentos capítulos.
Voltei a assistir novelas, principalmente depois que começaram a fazer remakes. Não consigo ficar indiferente em relação ao que todo mundo está comentando…
Na nova edição de Vale Tudo, a vilã Maria de Fátima foi magistralmente atualizada. Se em 1988 a personagem vivida por Glória Pires era má, interesseira e cínica, a sua versão 2025 (agora interpretada por Bella Campos) é tudo isso, porém com as características de alguém que não vive mais num mundo analógico; seu cinismo aparece justamente na forma como lida com o ambiente digital. Ela ainda é uma jovem fútil e mentirosa como a do século passado, porém suas atitudes para enriquecer de forma rápida e fácil incluem situações que todos nós naturalizamos nos dias de hoje.
Quem nunca editou um vlog para atrair mais “seguidores” ou vestiu aquele lookinho apenas para um post como se fosse uma roupa casual do dia a dia? Sem contar as dicas de coisas que nunca fez.
Provavelmente, as críticas ferrenhas para a atriz nesse começo de novela vêm justamente da familiaridade de seus haters. Não é legal ver uma personagem que deveria nos causar repulsa fazer coisas que também fazemos, não é mesmo?
Ostentar para se sentir valorizado não é um valor tão vilanizado como em outros tempos. Nossa relação com o ambiente digital vai de mal a pior e não é privilégio apenas da geração Z, que foi a mais afetada pelas transformações que a tecnologia imprimiu em sua infância e adolescência.
Em meio às trends polêmicas que todo mundo critica, mas não deixa de participar, a multiplicação das IAs como meio de criação e até uma ameaça de greve das redes por 24 horas que, particularmente, duvido que tenha uma aderência relevante, arrisco sugerir uma atualização da célebre frase do Sartre. Hoje também caberia dizer que “o inferno são as redes sociais”!
Mas como não fazer parte de algo que todo mundo faz?
Sim, aquela resposta se encaixa como uma luva… E aquela outra que também rolava muito lá em casa pode ser uma variante inconclusiva, mas não menos instigante: “todo mundo é muita gente”!