Curte o seu momento

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Terminamos a reunião e era visível o desânimo no rosto dos que ficaram na sala. Nosso gerente não poupou ninguém… Os números eram alarmantes e tínhamos seis meses para melhorá-los. Nosso time tinha seis pessoas (cada um com seu cada qual). E nosso chefe direto, o Meireles, era um cara que não tinha vida pessoal, adorava contar seus feitos profissionais que incluíam a inflexibilidade nas negociações e o fato de nunca, absolutamente nunca, misturar a razão com a emoção. Ah! Ele também adorava uma hora extra e fazia beicinho para quem não seguia suas práticas!

Depois que o gerente saiu da sala, sobrou para todo mundo. Foi decretada a extinção do final de semana nos próximos meses, até que os números melhorassem, o que na prática significava que faltas no sábado só seriam toleradas por motivo de morte. De parente ou a própria.

Enquanto o Meireles anunciava o pacote de mudanças, o Léo me olhava com a clara intenção de provocar uma indesejada crise de riso. Competente e organizado, ele catalogava tudo que fazia como uma espécie de “dossiê” que comprovava cada instante gasto do seu suor para a empresa. O engraçado dessa história é que me lembrei disso agora quando comecei a escrever, pois a maior recordação que tenho desse amigo é mais leve, oposta a esse comportamento. Apesar de toda a organização e seriedade, ele nos recomendava umas duas vezes ao dia para aproveitarmos o nosso momento. Lá se vão mais de 10 anos e ainda consigo ouvir a voz dele dizendo: “Tá feliz? Então, curte o seu momento”! Desde então, além de tentar seguir o “mantra léozense”, também o dissemino entre as pessoas que gosto.

As semanas seguintes foram tensas! O dossiê do Léo ganhou muitas páginas e os olhos do Meireles brilhavam a cada lista de hora extra… Definitivamente, não havia motivos para cantarmos uma bela canção! Mas, como todos sabem, as empresas não são feitas somente de chefes racionais e metas a cumprir, existe um departamento muito peculiar que naquela época era chamado de Recursos Humanos, o famoso RH, que normalmente era composto por funcionárias que adoravam abraçar árvores, usar termos em inglês e que eram remuneradas para garantir o bem-estar dos colaboradores, ou melhor, dos “partners”.

Eis que, no meio daquele período de total atenção aos números, em que tínhamos que “performar” como nunca havíamos “performado”, nosso querido RH lançou a “Primeira Semana da Música no Bosque”! Sim, havia um bosque na fábrica e também pessoas que trabalhavam nela que tinham bandas de música! Aliás, essas pessoas adoravam dizer para os trabalhadores daquela empresa que eram músicos e para os músicos de suas bandas, que eram trabalhadores daquela empresa.

A programação acontecia no período do almoço, que ocorria normalmente entre às onze da manhã e às duas da tarde. Obviamente que o Meireles “sugeria” que naquele período retornássemos às atividades logo depois de almoçar, não cumprindo os sessenta minutos que nos eram de direito… Mas na última sexta-feira do mês, a ordem veio da diretoria: todos deveriam prestigiar o show da banda vencedora!

Era um trio (baixo, bateria e guitarra) com uma vocalista. O “musician-partner” era o baixista! Tocaram “One” do U2. Eu estava sozinho e não reconheci ninguém da minha área no meio daquele público, a música ia num crescente a cada estrofe! A cantora tinha uma voz angelical, infinitamente melhor que a do cantor original (o que não considero tão raro), definitivamente algo estava acontecendo naquele bosque! Quando chegou na vocalização, no apogeu da música, me permiti fechar os olhos… Uma sensação de prazer tomou conta do meu corpo, eu não controlava mais meus movimentos! Numa espécie de transe “Araketiano”, meu corpo estremeceu, minhas pernas me desobedeceram… Ao final do último acorde, senti um nó na garganta e os olhos marejados, só deixei o rio correr!

Quando abri os olhos, para minha surpresa, o Meireles estava a poucos metros de mim. Também sozinho! Também em transe! E pasmem… Vi uma lagriminha escorrendo no seu olho esquerdo!

Nos olhamos e tivemos uma rara conexão! Nossas lágrimas nos uniram… Ele acenou com a cabeça com a expressividade do cigano Igor da novela! Franzi a testa e devolvi o cumprimento! Nos tornamos cúmplices de um momento! Obrigado por isso, RH!

Ao terminar a reunião da tarde, fui interpelado pelo Léo a respeito do show. Ele havia perdido, pois precisava atualizar seu dossiê. Falei que tinha sido ok, que não curtia U2… Em seguida, ele me afirmou radiante que o Meireles havia elogiado seu trabalho e sua organização, algo tão raro quanto a passagem do Cometa Halley pelo planeta Terra! Minha reação foi imediata: “Está feliz? Então curte o seu momento”!

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